Olá outra vez. Estão prontos para pedir? — sondou a empregada, com uma simpatia artificial desenvolvida por anos de prática. Era a segunda vez que vinha à mesa do casal.
Ricarlos olhou para Cecílvia e suspirou. A sua namorada continuava com a ementa aberta.
— Já escolheste? — perguntou-lhe, embora adivinhasse a resposta.
— Hmmm… Não, ainda não…
— Só mais um bocadinho, está bem? – pediu Ricarlos à empregada, sorrindo com embaraço.
— Com certeza — replicou ela, esforçando-se por disfarçar a exasperação que começava a sentir. — Quando tiverem decidido, chamem-me, sim?
— Sim, claro, obrigado — retribuiu Ricarlos. Depois da empregada se afastar, voltou a dirigir-se a Cecílvia: — Então, porra, ainda não escolheste? Estou cheio de fome! É sempre a mesma coisa…
— Calma, estou indecisa.
— Calma, não! Já é a segunda vez que a mulher vem à mesa para anotar o nosso pedido.
— E então, qual é o problema?
— O problema é que eu estou cheio de fome e aquele grupo de 30 pessoas está a escolher, e se pedirem antes de nós, a nossa comida vai demorar imenso.
— Porra, não sejas chato, Ricarlos! Não percebes que estares a refilar ainda me faz demorar mais tempo?
Ricarlos ia dizer algo, mas achou mais prudente não o fazer. Em vez disso, virou a cara para o lado, fechou os olhos e voltou a suspirar, desta vez com mais força, como se expelisse vapor.
— Achas que em vez de criticares e suspirares, me podes ajudar a escolher, se faz favor?
— Mas ajudar como? Eu é que vou saber o que te apetece?
— De que é que achas que vou gostar mais: bacalhau à Brás ou carne de porco à alentejana?
— Hmm… sei lá. Tu costumas gostar da carne de porco.
— Sim, mas queria evitar comer carne…
— Então pede o bacalhau.
— Só que depois vou ficar a pensar nas batatas aos cubos…
— Epá, então não sei.
— Tu vais comer o quê?
— O que é que isso interessa? Escolhe o que tu queres comer!
— Interessa porque não quero ficar com inveja do teu prato!
— Vou comer um bitoque — respondeu, revirando os olhos.
— Ah, não, vaca, que porcaria! Isso não quero.
— Óptimo, não queres isso, perfeito. Então agora escolhe o que queres.
— Cala-te, não sejas impaciente!
— Impaciente? Estás a gozar com a minha cara? Estou aqui há 15 minutos à espera que tu escolhas!
— Eu sei, estou a tentar decidir!
— Mas então decide de uma vez por todas, foda-se! Escolhe a merda de um prato! Isto não é uma decisão de vida ou morte! Não estás decidir se desligas a máquina de suporte de vida do teu pai ou da tua mãe! Não estás a desarmar uma bomba numa escola cheia de crianças e tens de decidir se cortas o fio verde ou o vermelho! Estás só num restaurante a escolher um prato!
— Eu sei, mas não quero escolher um prato e depois arrepender-me!
— Mas isso acontece a toda a gente! Às vezes estamos num restaurante, arriscamos num prato e depois não gostamos! E assim aprendemos e para a próxima pedimos outro! É assim que funciona!
— Agora estás a dar-me uma lição de vida através do menu de um restaurante, é isso? Estás a ensinar-me que temos de tomar decisões e que o risco faz parte da vida, é? Poupa-me, Ricarlos, por favor! Só estou indecisa em relação ao que vou comer, nada mais.
— Então se é só isso, se não é nada especial, escolhe, porra!
— É o que estou a tentar fazer! Lá porque tu decides logo, porque não tens imaginação nenhuma e comes sempre a mesma porcaria em todo o lado, eu não tenho de ser como tu!
— Ah! Ah! Ah! Claro! Agora sou eu que estou errado, porque não demoro seis anos a escolher a merda do prato que vou comer! Como é óbvio…
— Não, estás errado porque estás a querer impor o teu ritmo aos outros! Neste caso, a mim! As pessoas são diferentes e têm ritmos diferentes, e tenho pena que com a tua idade ainda não tenhas percebido isso.
— Não, pelo contrário, minha menina: tu é que me estás a impor o teu ritmo, ao obrigar-me a ficar à espera que escolhas, tudo porque és incapaz de tomar uma decisão depressa.
— Incapaz de tomar uma decisão depressa? Porque estou a demorar um bocadinho a escolher um prato?! A sério?
— Sabes perfeitamente que é verdade! Tens dificuldade em tomar decisões, pelo menos no que toca a comida.
— Pff! Que ridículo…
— Ai é? É ridículo, é? Então prova que és capaz: eu vou chamar a empregada e, mal ela chegue à mesa, tens de dizer o que vais comer. Sem hesitações.
— Ui, que desafio tão complicado! Não sei se vou conseguir! Agora é que me apanhaste — ironizou ela.
— Não se importa? — disse Ricarlos, fazendo sinal para a empregada que se encontrava na outra ponta do restaurante. Depois, com um esgar provocatório, piscou o olho à namorada.
Furiosa, Cecílvia olhou Ricarlos com repugnância, mas rapidamente se voltou a focar na ementa, pois a empregada aproximava-se com rapidez. Tinha de decidir depressa, não podia dar ao seu namorado irritante e presunçoso a satisfação de estar certo. Começou a roer as unhas. O que escolher? Como escolher? Sentia pequenas gotículas de suor formarem-se na testa. Que prato lhe apetecia mais? De qual se arrependeria menos? O coração batia cada vez mais depressa. Carne de porco ou bacalhau à Brás? Carne de porco ou bacalhau à Brás? Carne de porco ou bacalhau à Brás?
— E então, já sabem o que vão comer? — perguntou a empregada, de bloco e caneta em riste.
— Sabemos, sim senhora. Para mim é o bitoque. E, para ti, amorzinho, o que é que vai ser? — Ricarlos falava num tom jocosamente doce.
— Para mim… hmmm… vai ser… hmm… a… o…
— Precisas de mais tempo? — questionou, troçando.
— Não, não preciso, obrigada — agradeceu Cecílvia, sarcasticamente. Fechou a ementa e, com uma aura de confiança, disse: — Eu quero a carne de porco à alentejana. Com bastantes batatas ao cubos.
— Muito bem, portanto: um bitoque para o senhor e uma carne de porco à alentejana com muitas batatas para senhora, é isso?
— Exacto — concordou Ricarlos, satisfeito. A sua manipulação tinha funcionado. Ele não queria ganhar a discussão, queria apenas forçar a namorada a pedir, para comer o mais rapidamente possível.
— Certíssimo — confirmou Cecílvia, orgulhosa por mostrar que não tinha problemas em tomar decisões, mas irritada pela pressão desnecessária a que fora submetida.
Logo de seguida, ouviu-se um estrondo ensurdecedor, semelhante ao ribombar de mil trovões, e o restaurante foi inundado por um intenso brilho vermelho. Todas as pessoas ali presentes gritaram, em pânico, entreolhando-se na tentativa de compreenderem o que estava a acontecer. De súbito, alguém chamou a atenção para o que se passava no exterior das grandes janelas panorâmicas do restaurante e, rapidamente, todos os clientes, empregados e cozinheiros se apinharam junto ao vidro. O que observaram era um cenário surreal de horror: o céu inteiro adquirira uma tonalidade de um vermelho-sangue brilhante, entrecortado por volumosas nuvens roxas e cinzentas que cuspiam relâmpagos negros, dizimando aquilo que atingiam e incendiando tudo em redor.
Por instinto, as pessoas procuraram uma explicação para o que acontecia nos seus telemóveis e na televisão, mas nenhum aparelho funcionava, pelo que ninguém sabia o que fazer ou como reagir. Limitavam-se a assistir, petrificados, ao que parecia ser uma catástrofe épica sem precedentes.
— O que… O que… O que é-é isto? — murmurou Cecílvia ao namorado, agarrando o seu braço. Estava lívida e todo o seu corpo tremia.
— Não faço ideia…— respondeu Ricarlos, atónito.
— Será… Será que foi uma-uma b-bomba atómica?
— Espero bem que não…
— Mas achas que pode ter sido?
— Sim… Quer dizer, não sei, não faço a mínima ideia do que se passa…
— Eu explico o que se passa — disse uma voz grave e envolvente, vinda do meio do restaurante, uns bons metros atrás do aglomerado de pessoas coladas à janela. — É o fim do mundo, o Apocalipse.
Cecílvia e Ricarlos viraram-se na direcção da voz e depararam-se com um homem muito alto e robusto, com longos cabelos e barbas brancas, trajando uma túnica de um branco imaculado, todo ele irradiando uma aura de luz. O homem deslocava-se de mesa em mesa, comendo de forma alarve dos pratos dos vários clientes do restaurante.
— Deus?! — perguntou o casal, em uníssono, sem pensar. Não entendiam como, mas sabiam que estavam perante o Todo-Poderoso.
— O próprio — confirmou, com a boca cheia de polvo à lagareiro e uma garfada de arroz de pato em fila de espera para entrar no bucho.
A fim de se certificarem que não se tratava de uma alucinação, o casal olhou para as restantes pessoas junto da janela, mas mais ninguém parecia ter detectado a presença do Criador.
— É escusado. Eu sou real, mas só vocês dois é que me conseguem ver e ouvir — explicou Deus, enquanto mastigava o polvo.
— D-D-Disse que o mundo v-vai acabar? — conseguiu proferir Ricarlos, depois de ultrapassar o choque.
— Por favor, tratem-me por tu — pediu Deus. — Sim, vai acabar daqui a precisamente 21 minutos. Relâmpagos negros, lava verde, chuva ácida amarela, incêndios com labaredas azuis, tornados dourados, enfim, um espectáculo cheio de cor e movimento que muito me orgulho de ter criado. — Colocou o arroz de pato na boca e fechou os olhos, saboreando-o com prazer.
— M-Mas porquê? P-Porque é que vai acabar?
— Porque tu… Cecílvia, não é? — apontou na direcção da mulher, que acenou em confirmação. — Desculpa, mas criei muita gente, e às tantas torna-se difícil lembrar-me do nome de todos… O mundo vai acabar porque tu, Cecílvia, fizeste a escolha errada.
— A escolha errada? Q-Qual escolha? — perguntou ela.
— A carne de porco à alentejana. Devias ter escolhido o bacalhau à Brás, que é o meu prato preferido.
— Como?! O Apocalipse está a acontecer porque ela escolheu um prato em vez de outro?! — questionou Ricarlos.
— Mmm-hmm — confirmou Deus, devorando um pedaço de cabrito. — Toda a história da Humanidade, todos os pequenos e grandes acontecimentos e decisões conduziram exactamente a este momento, a esta escolha: bacalhau à Brás ou carne de porco à alentejana. Era a decisão mais importante de todas, a decisão final, aquela que determinaria o futuro do planeta. E a tua opção, Cecílvia, foi a carne de porco, um prato que eu não aprecio, o que significa o fim do mundo.
— O quê?! Toda a história da Humanidade aconteceu para chegarmos a esta escolha? Mas porquê?! Isso é ridículo! Não faz qualquer sentido! — comentou Ricarlos, perturbado.
— Ouçam, eu não vou estar aqui a explicar como funcionam os meus desígnios, até porque não vos dei capacidade para os compreenderem. Posso apenas revelar-vos que a culinária é a actividade mais espiritual de todas, e a comida a única forma de tributo a que eu ligo.
— Desculpe, Senhor, mas… pode só dizer-me uma coisa? O que aconteceria se eu tivesse escolhido o bacalhau à Brás?
— Ah, nesse caso a Humanidade atingiria a iluminação e a felicidade. Os humanos tornar-se-iam uma espécie de semi-deuses cozinheiros. Mas pronto, olhem, agora não vale a pena falar mais nisso. Ao menos ainda têm 18 minutos para se despedirem e comerem o que quiserem, que este restaurante vai ser o último local a ser afectado pelo Apocalipse. A comida aqui é divinal. — Pegou numa perna de frango assado e começou a roê-la com dedicação.
Ricarlos manteve o olhar fixado em Deus e engoliu em seco. Não tinha coragem de encarar Cecílvia. Não temia a morte, mas tinha medo de sequer imaginar o que ela poderia dizer ou fazer. Um calafrio de terror atravessou-lhe a espinha ao antecipar o que o aguardaria durante os próximos 18 minutos.
— Meu Senhor, acha que é possível acabar o mundo imediatamente?
— Lamento mas não dá, que o espectáculo foi todo pensado para ter exactamente 21 minutos e esta porcaria deu-me imenso trabalho a preparar.
— Por favor, Senhor, imploro-lhe, imploro-lhe! — disse, ajoelhando-se. — Acabe o mundo já! Ou então mate-me! Mate-me agora! Não interessa como! Mas mate-me!
— Bem, tu estás cheio de pressa de morrer! Mas afinal porque queres tan… — Interrompeu o discurso quando ergueu a cabeça e reparou no olhar de Cecílvia. Então compreendeu: torrentes de lava a liquefazer a pele e a carne não eram nada em comparação com o profundo rancor que borbulhava nos olhos dela. Um rancor justificado pela razão suprema, que a qualquer momento eclodiria numa cólera avassaladora, transformando Cecílivia na encarnação da fúria. Tremendo, Deus benzeu-se, pegou numa travessa de bacalhau à Brás e desapareceu num clarão multicolorido. ■